quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
CONTRIBUTOS DA NEUROCIÊNCIA PARA O ENTENDIMENTO DO CÉREBRO ANALFABETO
Alexandre Castro Caldas Grande prémio Bial de Medicina 2002
«Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro.As crianças, ao desenvolverem o cérebro, têm janelas de oportunidade para aprenderem. Se a informação não é dada na altura própria, a janela fecha-se e a oportunidade passa». Assim, apesar das controvérsias, as crianças devem ter estímulos a partir dos 3 anos.Apesar do saber ocupar lugar, o cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço possível, tudo para não consumir energia. O treino mental, desde criança, ajuda nessa organização. E quanto mais matrizes para resolver os mesmos problemas, melhor. «O cérebro selecciona sempre o que é mais económico e rápido para processar informação».
O Cérebro Analfabeto – A influência do conhecimento das regras de leitura e da escrita na função cerebral, Grande Prémio Bial de Medicina 2002, é um estudo sobre o cérebro. Pode-mo explicar?
É o estudo sobre o cérebro das pessoas que não foram à escola e as implicações que cria essa falta. É a expressão das alterações biológicas que a aprendizagem provoca. Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. É muito importante, para criar ligações dentro do cérebro, para desenvolver determinadas estruturas, que as pessoas aprendam a leitura e tudo o que está relacionado com ela. No fundo, é um modelo para estudar no humano a influência do meio sobre a evolução cere- bral. Isso permitiu publicar muitos trabalhos, bem aceites internacionalmente, e permitiu entrar na segunda fase do estudo: estudar pessoas que, sendo analfabetas a vida toda, resolveram apreender a ler em adultos. Se os analfabetos tinham problemas de organização cerebral, relacionados com a incapacidade de ler, como é que eles podiam depois aprender?
Tem-se verificado que eles aprendem com áreas e regiões do cérebro diferentes daqueles com que aprenderiam se fossem pequenos. Os jovens usam um suporte de informação diferente dos adultos.
Significa que uma criança utiliza uma parte do cérebro quando começa a estudar. Se alguém nunca estudou e quer aprender utilizará uma parte diferente?
Exactamente.
Um analfabeto está menos preparado para a vida em sociedade, para a realidade?
Há uma falha importante, embora haja pessoas fantásticas, de uma inteligência brilhante, e que chegam a desenvolver os próprios métodos de registo de informação escrita. Reunimos algumas agendas e documentos de pessoas analfabetas onde vemos o desenvolvimento de métodos específicos que inventaram perante a dificuldade. Não aprendeu, inventa.
E como inventa?
É a parte interessante. Temos uma certa capacidade de inventar e os analfabetos são capazes, perante a enorme necessidade de registar informação, de criar mecanismos próprios para o fazer. Inventaram processos de a registar que não são exactamente iguais ao da escola que são normalizados. Isso abriu a perspectiva sobre a criatividade, perceber se os analfabetos são mais criativos, um estudo que está a ser desenvolvido.Ainda não temos respostas.
Em termos práticos, o analfabetismo implica o quê?
Demoram mais tempo a resolver um problema, têm mais dificuldade na compreensão da linguagem. O último censo mostrava 11% de analfabetismo na população em geral. É imenso. Se pegar na população acima dos 50 anos corresponde, talvez, a 30%.
Sabe-se o que é preciso fazer para uma criança se desenvolver?
Neste momento discute-se com alguma intensidade o que é estimular crianças, o que é que as neurociências modernas trouxeram sobre o conhecimento do cérebro para saber o que é preciso fazer a uma criança para ela se desenvolver. De facto, estamos com um atraso grande nesse domínio. Existem publicações de ligação da pedagogia com as neurociências, uma área fundamental a desenvolver, e era importante que houvesse uma reflexão em Portugal, não para que as coisas sejam absorvidas como verdade, mas para que as pessoas sejam sensíveis a essa variável. É preciso que as pessoas que lidam com crianças tenham a perspectiva do que é a biologia e a plasticidade do sistema nervoso como órgão de adaptação à informação, para saberem trabalhar com isso, identificar e lidar com os problemas que surgem. A perspectiva psicológica utilizada em Portugal está antiquada nas suas referências bibliográficas. É pouco, temos de ter uma perspectiva mais neurobiológica, mas sem perder as outras.
Existe em países da Europa essa preocupação?
Saíram normas em Inglaterra no final dos anos 90 que defendem que os estímulos para o ensino se devem começar a fazer entre os 3 e os 6 anos de idade. Houve pessoas que protestaram, que dizem que nessa altura não há nada a estimular, outras disseram que é tarde demais para se começar. Há aqui uma discussão que está em cima da mesa e que é preciso fazer. As pessoas têm de começar a investir a partir dos 3 anos de vida, pois esse é o período mais rico de aquisições.
Há momentos próprios para aprender?
As crianças ao desenvolverem o cérebro têm janelas de oportunidade para aprender. Se não fornecemos a informação na altura própria, altura que a criança está mais apta para receber determinado tipo de informação, a janela fecha-se e passou a oportunidade. Quando quiser aprender já não vai aprender da mesma forma nem com a mesma facilidade. O mesmo aconteceu com as pessoas que não foram à escola, fechou-se a janela. Conseguiram aprender mais tarde, mas com muita dificuldade e usaram outras regiões do cérebro, não foram as que a biologia tinha predisposto para isso.
Pode-me dar um exemplo?
A ligação da escrita e da leitura num adulto que aprende a ler é completamente diferente da de uma criança. Ler e escrever são duas aptidões completamente distintas em termos neurobiológicos. Associamo-las porque as aprendemos ao mesmo tempo e fazemos essas associações. Mas quando as áreas envolvidas deixam de ser as habituais e passam a ser outras, o fenómeno torna-se completamente distinto um do outro, o que é fascinante como compreensão dos núcleos cerebrais. É muito difícil para um adulto analfabeto aprender a escrever. Ler ainda consegue. O escrever passa a ser quase como uma cópia de uma evocação da leitura, o que é extremamente difícil.Têm que evocar visualmente as palavras escritas e depois copiar a imagem interior. Os miúdos não fazem isso, têm uma imagem táctil da escrita e acabam por escrever sem pensar como se desenha um a, não têm de pensar nisso, o a está na mão deles, está no automatismo motor. Isso não acontece nas pessoas adultas analfabetas. Não conseguem desenvolver isso, por isso
Temos uma certa capacidade de inventar e os analfabetos são capazes, perante a enorme necessidade de requisitar informação, de criar mecanismos próprios para registar de qual- quer forma essa informação.
As letras são sempre muito elaboradas, muito imperfeitas.
Podemos dizer que desde o momento que nascemos vamos tendo as janelas que vão abrindo para determinadas funções. Depois de se fecharem, a aprendizagem de determinadas funções torna-se árdua, mesmo impossível?
De certa maneira, mas não devemos serconstrutivistas no sentido de que sejam neces- sárias as etapas todas. Evidentemente que se a criança não aprendeu numa determinada fase a matemática, que é um belíssimo exemplo, criou-se um problema à volta da matemática que não devia existir. No fundo, a matemática utiliza processos intuitivos de pensamento que as crianças têm. Essas operações que estão no cérebro, como operações básicas intuitivas, têm de ser trazidas para um nível consciente, de elaboração ancorada no sistema de representa- ção que as crianças aprendem.As crianças têm de aprender o sistema de representação dos algarismos, da simbologia própria, e depois encaixar nesse sistema de representação aquilo que é o pensamento matemático intuitivo. A partir daí, o pensamento matemático vai sendo elaborado, vai aumentando. Essa passagem, essa colagem, tem tempos, tem de ser feita nas alturas próprias. É fundamental treinar a memória das crianças, coisa que as pessoas começaram a achar que não era necessário. O aprender a tabuada de cor não implica que não perce- ba a tabuada, pode aprender e perceber, é o desejável, mas é preciso que a decore também. Se tivermos alguns elementos decorados, o pensamento é muito mais rápido, não temos de ir buscar coisas mais complicadas, porque isso atrasa o raciocínio, modifica-o. É impor- tante treinar a memória.
Quanto mais estímulos, maior flexibilidade cerebral?
Decorar os afluentes dos rios, por exemplo. As pessoas dizem agora que não é preciso para nada.Vai a um atlas, está lá tudo. É verdade. Mas se os decorar, o que não custa nada, com essa matriz, se resolver ser médico, torna-se mais simples e rápido decorar os ramos das artérias, é parecido e tenho lá a matriz.
O saber não ocupa lugar?
Ocupar ocupa, mas é capaz de criar meta- sistemas de arquivo que a criança organiza no cérebro. Posso aprender muita coisa e ser capaz de a organizar facilmente, tenho um organi- zador. Se tiver muita informação para lidar, organizo-a em áreas. Condenso a informação e, depois, pode ser puxada por uma pontinha e vem tudo. A preocupação biológica do cérebro, o seu grande objectivo, é não consumir muita energia, não se gastar muito. Quanto menos células nervosas estiverem a trabalhar melhor. O cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço e da forma mais racional possível. As pessoas treinadas desde crianças colocam a informação em lugares próprios, quem não tem treino nenhum tem de decorar uma informação imensa. Um anal- fabeto que não conhece os dígitos para decorar o número 9 tem de decorar o 9 no sentido de quantidade, 9 coisas, 9 árvores, 9 pauzinhos, e guarda isso dessa maneira, ocupa mais espaço do que decorar o símbolo 9. Não preciso da quantidade para guardar a informação, abro a janela do 9, tenho a posição sequencial do 9, vários valores, os que quiser, para o 9. O símbolo representa na quantidade determina- da coisa, na sequência outra coisa. Isso é uma compactação da informação que traz enormes vantagens para o funcionamento do cérebro, a escola ajuda as pessoas a fazerem isso.
As crianças ao desenvolverem o cérebro têm janelas de oportunidade para aprender. Se não fornecemos a informação na altura própria, altura que a criança está mais apta para receber determinado tipo de informação, a janela fecha-se e passou a oportunidade.
A preocupação biológica do cérebro, o seu grande objectivo, é não consumir muita energia, não se gastar muito. Quanto menos células nervosas estiverem a trabalhar melhor. O cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço e da forma mais racional possível.
Quanto mais estímulos na escola, mais facilidade temos de aceder à informação?
Mais facilidade temos de lidar com a informação. Se aprender várias regras para fazer as mesmas operações ainda melhor, porque tem processamentos paralelos de informações e o cérebro selecciona sempre o que é mais económico e é muito rápido a processar informação.
Disse-me que o cérebro gasta muita energia a trabalhar?
Gasta porque não tem reservas nenhumas, as células nervosas precisam de glucose e o oxigénio.
O estudo disse que continuava, vai ter um caminho, que é qual?
Que é sobre pessoas que aprenderam mais tarde. Tenho mais alguns estudos que novamente estou a fazer com analfabetos, coisas que ficaram para trás e que gostávamos de estudar.
Uma pessoa que anda na escola até à quarta classe, depois não estuda mais, esse tempo ajuda?
Apesar de tudo, as pessoas que andaram na escola e depois nunca mais pensaram em ler nem estudar nem fazer coisa nenhuma, têm soluções biológicas para as coisas, não são iguais às pessoas que nunca foram à escola. Se foram infectadas pelo vírus do conhecimento ficam com o vírus. A escola tem um efeito geral sobre o cérebro, quem tem mais estímulos tem um maior desenvolvimento celular. A escola só por si é um estímulo rico. As crianças interagem entre elas, surgem novas questões, só por si enriquece. Depois, aprendem-se coisas específicas. Se nunca for à escola não aprendo que o a é aquele boneco que corres ponde ao som a, nem fico a saber que posso partir as palavras aos bocadinhos. Quem não vai à escola não sabe tirar o p de sapato, não faz as operações mentais de segmentação de linguagem para ter consciência da linguagem, do que está a dizer.
Entrevista recolhida em : http://www.isave.pt/pdfp/SER%20SAUDE%202%20P.pdf
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
O Cérebro De Um Adulto Muda Tanto Como O De Uma Criança, Quando Aprende A Ler
Cientistas e voluntários portugueses participaram num estudo internacional inédito sobre os efeitos da leitura no córtex cerebral, comparando analfabetos, leitores e ex-iletrados.
Quando se aprende a ler, é como se uma armada vitoriosa chegasse às costas desprevenidas do nosso cérebro. Muda-o para sempre, conquistando territórios que eram utilizados para processar outros estímulos – para reconhecer faces, por exemplo – e estendendo a sua influência a áreas relacionadas, como o córtex auditivo, para criar a sua própria fortaleza: uma nova zona especializada, a Área da Forma Visual das Palavras. Isto acontece sempre, quer se tenha aprendido a ler aos seis anos ou já na idade adulta.
Esta é uma das conclusões de um estudo internacional publicado hoje na edição online da revista Science, em que participaram cientistas portugueses – e voluntários portugueses também, pessoas que aprenderam a ler já tarde na vida.
“Este é o primeiro trabalho que compara o cérebro de pessoas letradas e analfabetas, mas também de ex-iletradas (que aprenderam a ler em adultos)”, explica José Morais, professor jubilado de Psicologia da Universidade Livre de Bruxelas e um dos autores do artigo.
“Este é o primeiro trabalho que compara o cérebro de pessoas letradas e analfabetas, mas também de ex-iletradas (que aprenderam a ler em adultos)”, explica José Morais, professor jubilado de Psicologia da Universidade Livre de Bruxelas e um dos autores do artigo.
Reciclagem neuronal
“Comparando o cérebro destas pessoas podemos ver o impacto da aprendizagem deste código no nosso cérebro”, adianta Paulo Ventura, professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. “Trabalhámos sobre a hipótese da reciclagem neuronal, defendida pelo chefe da equipa, Stanislas Dehaene [do INSERM-Instituto Nacional da Saúde e da Investigação Médica francês]. A ideia é que, sendo a escrita algo relativamente recente na história humana, com cerca de 6000 anos, não houve tempo suficiente para que se desenvolvessem estruturas físicas no cérebro” com ela relacionadas, explica.
Na falta de ordens evolutivas codificadas no nosso ADN, o que acontece é que o cérebro de cada pessoa que aprende a ler se modifica para acomodar as novas capacidades, porque tem uma grande capacidade plástica. E a leitura recruta uma área cortical semelhante em todas as culturas humanas. Os cientistas estavam também interessados em perceber quais as funções desalojadas, digamos assim, pela nova área cerebral que é criada quando se aprende a ler, para além de compreenderem como passa a funcionar o cérebro leitor.
Dez analfabetos brasileiros, da região em torno de Brasília (com a idade média de 53,3 anos, e originários de meios rurais), 22 pessoas que aprenderam a ler em adultos (12 deles portugueses, alguns recrutados na zona de Paris) e 31 letrados (11 portugueses) foram os participantes.
“Foi difícil encontrar iletrados portugueses, até porque quando começámos o estudo, há três anos, acabaram os cursos de alfabetização para adultos, que era onde podíamos mais facilmente encontrar estas pessoas, quando se inscreviam”, diz José Morais. “Em Portugal, felizmente, é cada vez mais difícil encontrar analfabetos.”
Os cérebros dos voluntários recrutados foram analisados – observados em acção – quando resolviam uma série de testes. Para isso, foi usada a ressonância magnética funcional, um exame de imagiologia que permite medir os níveis de actividade nas diferentes zonas do cérebro num determinado momento (ver ilustração).
“Os brasileiros foram testados no Brasil, através da rede de hospitais privados SARAH, de neurodiagnóstico e neurorreabilitação, mas quando o projecto começou, não havia em Portugal máquinas com potência suficiente. Fizemos uma ponte aérea com Paris”, explica Paulo Ventura.
E o que descobriram então os cientistas sobre o que acontece ao cérebro de quem aprende a ler?
Nunca é tarde
Antes de mais, que nunca é tarde para aprender: “O cérebro dos ex-analfabetos só em poucas coisas difere do dos alfabetizados, está muito mais próximo destes”, diz José Morais, ainda que as suas condições sócio-económicas se possam assemelhar mais à dos iletrados. “Ensinar alguém a ler na idade adulta tem os mesmos efeitos do que ensinar uma criança. É uma boa notícia, não há razão para desistir dos iletrados”, sublinha.As diferenças entre o cérebro leitor e aquele dos que nunca aprenderam a ler é que são todo um rol. Por exemplo, no cérebro de quem lê, os exames de ressonância magnética revelam um aumento de actividade no córtex auditivo, quando vê uma palavra escrita. É activado quando temos de decidir se estamos perante uma palavra a sério ou um conjunto de letras sem nexo, ilustra José Morais.
“Poder-se-ia pensar que no córtex auditivo há uma extensão das áreas ligadas ao visual”, diz o cientista ao telefone, a partir de Bruxelas. “É uma área envolvida no tratamento de fonemas, que são as unidades mais pequenas da fala. Curiosamente, os iletrados são incapazes de manipular as unidades fonéticas”, contribui Paulo Ventura.
Finalmente, há o curioso roubar de terreno à área cerebral que processa o reconhecimento de rostos pela Área da Forma Visual das Palavras, que ganha terreno no córtex, quando se aprende a ler. “Há menos área dedicada a esta função anterior nos alfabetizados. A nova área rouba um bocadinho à antiga para lidar com a leitura. É como se os iletrados fossem melhores, entre aspas, a reconhecer os rostos, mas obviamente as diferenças são minúsculas”, diz Paulo Ventura. O interessante disto, nota, é que “comprova a teoria da reciclagem neuronal”.
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